Hematomas
Ela tem uma característica que a irrita muito: uma facilidade enorme de criar hematomas pelo corpo.
É daquele tipo que encostou, ficou roxo.
Uns dias atrás, depois de uma semana difícil precedida pelo término de seu relacionamento, nunca se deparou com tantos hematomas pelo corpo. Não, ela não sofreu nenhuma agressão, mas possivelmente alguém a pararia na rua para perguntar se ela tinha apanhando em casa, se precisava de alguma ajuda.
Roxos nas pernas inteiras.
Direita e esquerda.
Nos braços.
E, para finalizar, ganhou de presente um roxo na cabeça, um galo, bem no meio da testa. Bateu a cabeça num móvel que ainda não acostumou com a posição no novo apartamento.
Alguns hematomas doem. Outros não.
Ela sabe que os roxos que doem são reflexo da mudança de casa que fez ao longo dos dias. Levou caixas e caixas para cima e para baixo, malas, todos os livros, arrastou móveis, carregou móveis, esvaziou armários, coisas caíram em cima dela e em outras ela tropeçou.
No meio disso tudo, parou por várias vezes, respirou e chorou.
No chão da sala, no chão da cozinha, no chuveiro, no elevador, na padaria, no supermercado, no carro e na cama todos os dias antes de dormir.
E dormir, na verdade, se mostrou o único momento que a dor (física e não física) dava uma trégua. Claro, quando ela conseguia dormir.
Existem os hematomas que não doem, como se saíssem de sua alma espancada. Essa sim, foi a nocaute com toda a situação.
E seu corpo, muito inteligentemente, encontrou um jeito de colocar para fora o que sangrava por dentro. Os roxos.
Por um momento, ela achou que por ter passado por términos de relacionamentos anteriores saberia lidar melhor com essas situações futuramente.
Aprendeu que não.
Cada perda é uma perda com uma significação única, de um momento único.
Uma sensação de falência daquele projeto de vida vigente, que era diferente do anterior, que era diferente do anterior do anterior.
Uma frustração só.
Até porque recentemente, compreendeu que a impermanência é a única coisa que permanece na vida.
Não há garantias. Tudo muda o tempo todo.
E dessa vez, por saber da impermanência de tudo, tinha resolvido se jogar de cabeça.
E se perguntarem a ela se obteve êxito em sua tentativa, não conseguiria responder.
Há dúvidas. Erros de cálculo.
Ela é de humanas e os cálculos foram bastante equivocados, diríamos.
Acreditou que o certo era viver a vida do outro, fazer o outro feliz e parou de olhar para ela mesma. Se dedicou demais tentando mostrar que relacionamento era uma coisa legal, que pensar o futuro é divertido e fazer planos faz parte.
Esqueceu-se por um momento que ninguém faz o que não quer e que não era sua função mostrar nada para ninguém.
Pensou depois de tudo: “Que erro clássico!”
Confessou sentir-se ingênua e que essa sensação a faz perder o controle.
E em mais uma reflexão se questionou: “Controle de que?”, lembrando que nada controlamos nessa vida.
Não há garantias. Tudo muda o tempo todo.
A tal da impermanência.
Hoje ela está em sua nova casa, com sua nova vista, seus livros, seus discos, suas playlists, suas plantas e hematomas pelo corpo.
Um corpo que sustenta um buraco enorme no peito.
Um vazio que ela sabe que nunca vai se preencher, simplesmente porque não precisa ser preenchido.
Um vazio que sabe, a mantém viva, desejante e pulsante.
Mas que, por vezes, faz-se difícil viver o “apesar de”.
Por consequência, quando se deu conta de tudo o que aconteceu, pensou que poderia terminar mais uma de suas reflexões com algo minimamente otimista.
E riu.
E pensou:
“A vantagem dos trinta e tantos anos é saber que os hematomas vão embora. Que essa dor vai passar. Que nada é para sempre. E que a vida é o que dá.“