Psicologia das Massas e a Copa do Mundo

Karien Petrucci
5 min readJul 2, 2018

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Surgido oficialmente durante a primeira metade do século XIX, nas universidades públicas inglesas e, praticado, sobretudo, pela juventude da crescente elite industrial britânica, o futebol ostenta hoje o status de ser a manifestação esportiva mais praticada em todo o mundo.

Enquanto fenômeno de massa, o futebol consolidou-se no Brasil durante as três primeiras décadas do século XX. Foi nesse período que a competição Copa do Mundo de Futebol foi criada pelo francês Jules Rimet, em 1928, sendo a primeira edição realizada no Uruguai em 1930 com a participação de 16 seleções, que foram convidadas pela FIFA, sem disputa de eliminatórias, como acontece atualmente. Desde então, de quatro em quatro anos, seleções de futebol de diversos países do mundo se reúnem para disputar a Copa do Mundo.

Em tempos de Copa do Mundo nosso país é tomado por certa magia, que envolve e paralisa boa parcela da população. A tabela de jogos torna-se o parâmetro que determina a nova divisão do tempo e horários de trabalho, comércio, indústrias e escolas refletem e se adaptam à exibição da seleção do país.

Administradores reúnem-se aos trabalhadores das empresas, organizando antecipadamente rodízios e plantões dos setores, facilitando o acompanhamento dos jogos. Nas livrarias, vários novos títulos sobre futebol podem ser encontrados, as coleções de figurinhas e álbuns exibindo fotos e biografias dos jogadores da seleção ganham realce e disparam nas vendas.

O Brasil destaca-se internacionalmente como celeiro de jogadores profissionais e o futebol se torna mais que um simples esporte com regras, técnicas e táticas. A cultura é impregnada de valores e símbolos afetos a esse esporte: filhos são presenteados ao nascer com camisetas da seleção brasileira, as diferentes mídias dedicam grande parte do seu trabalho acompanhando tais atividades e são recorrentes as manifestações culturais relacionadas a esse tema. Tais fatores são suficientes para classificar o Brasil como o país do futebol.

Relação entre a Psicologia das Massas e a Copa do Mundo

No texto “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud destaca, sobre as formações grupais, os pressupostos básicos que caracterizam uma reunião de pessoas como grupo. Destacam-se três dessas características: 1) possuir um ideal que os una, 2) apresentar uma interação sob a forma de rivalidade com grupos semelhantes e 3) contar com uma estrutura hierárquica bem definida. Quando relacionamos essas características com o movimento das torcidas dos times de futebol, é perceptível a presença dessas três características.

A partir do momento que existe a inserção em um grupo, a característica mais importante de uma massa é o desaparecimento das individualidades e a aparição de uma “alma coletiva” (Le Bom 1985) onde independentemente das características pessoais das pessoas que compõem a massa, essa “alma coletiva” faria com que elas pensassem e agissem de um modo totalmente diferente caso estivessem isoladas. Em outras palavras, a simples aglomeração de pessoas, sem qualquer objetivo determinado, não constituiria uma massa pois pressupõe uma mudança qualitativa nas relações, que envolve o compartilhamento de desejos, pensamentos, afetos e atos.

Ao longo da história, a Copa do Mundo de Futebol tem arrastado multidões para os estádios de todo o planeta. Em um jogo clássico, estádio lotado, não há diferenças entre os torcedores de um mesmo time, todos se tornam iguais na massa naquele determinado momento de euforia. A emoção das massas ofusca a lógica individual. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. É possível perceber o homem em desapego às regras da civilização, o que não aconteceria caso estivesse isolado à massa.

Podemos observar durante a Copa do Mundo, evento em questão para essa análise, que os objetivos coletivos sobressaem — e em certa altura se fundem — aos objetivos pessoais. Essa dinâmica pode ser observada em pessoas que levam vidas ditas normais, como, por exemplo, o vizinho diariamente gentil, mas que durante a Copa do Mundo se transforma no barulhento torcedor de futebol, gritando em alto e bom som por sua seleção ou xingando os torcedores do outro time e até o juiz da partida. Para ele, essa atitude é o resultado lógico de sua profunda lealdade ao “nós”, lealdade a seu país. No melhor dos casos, esse torcedor irá ignorar o grupo “estrangeiro” (os outros), mas ele pode, com a mesma facilidade, se tornar desdenhoso e hostil em relação a eles.

Essas reações, que se espalham rapidamente, surgem com bastante facilidade em um grupo de liderança forte ou com um código de comportamento firmemente estabelecido, como é o caso das torcidas. Os participantes reproduzem, por vontade própria, qualquer suposto “exemplo a ser seguido”.

O Comportamento da Massa Torcedora como Afirmação da Vida

A Psicologia das Massas para Freud é voltada ao estudo do indivíduo enquanto membro de uma raça, nação, profissão, instituição ou multidão unidos para fins e objetivos determinados. O indivíduo apresenta, em situações específicas, o que Freud denominou de instinto social, promovendo comportamentos peculiares para tal situação. Ainda segundo o autor, tais situações e comportamentos específicos a situações coletivas, denomina-se grupo psicológico:

“É um ser provisório, formado por elementos heterogêneos, que por um momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo, formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas obtidas por cada célula isoladamente.” (FREUD).

Imerso na multidão, o torcedor pode ter o que se chama de uma experiência do sublime. O pertencimento a uma massa torcedora pode fornecer uma sensação de comunhão, de identificação com o outro e com o todo. Assim, como membros de uma torcida, essa experiência da univocidade de sermos ao mesmo tempo singulares e parte do todo.

Seguindo essa linha de pensamento, consideramos que a inserção de um indivíduo na massa torcedora pode ser uma intensa experiência de afirmação da vida. Que mantém viva uma cultura popular de torcer — especialmente no Brasil — em que a massa torcedora surge como uma possibilidade de fortalecimento, ao mesmo tempo, da potência do coletivo e de cada um de seus integrantes.

Seja no estádio, em bares, reunindo-se em casas, ou isoladamente em sua televisão ou outras mídias, o torcedor vivencia um mundo de somatório de ideias racionais e irracionais, onde o time tem um papel central, motivando-o a uma manifestação favorável ou contrária ao seu desempenho.

Assim é a Copa do Mundo de Futebol, aquele momento em que todos se unem sob um objetivo coletivo assumindo características do grupo e colocando sua causa acima de todo o resto, mas que passado os dias da competição, todos retornam à sua individualidade.

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